Quinhentos anos se passaram desde os eventos de marcaram o início de mais um processo de mudança na vida religiosa e civil desde a idade média. Diversos fatores influenciaram esses eventos e o monge agostiniano Martinho Lutero não posta as 95 teses de seu protesto na porta da igreja em Wittenberg isoladamente. Ele o fez refletindo uma época, suas inquietações e perguntas.
O clima religioso do século XVI apresentava muitos desconfortos com os valores incoerentes apresentados por uma Igreja Romana que abertamente condenava o acúmulo de riqueza como parte de seus valores primordiais, ao mesmo tempo em que esta mesma Igreja e seus prepostos acumulavam riquezas e alianças com os poderes temporais dos príncipes e reis locais. O argumento contrário à legitimidade da venda de indulgencias papais ocupou um lugar significativo entre as teses de Lutero. A Reforma trouxe para o cenário religioso uma ênfase nos conceitos de responsabilidade individual e abriu espaço para a incorporação dos valores do trabalho, da poupança e, talvez ironicamente, contribuiu para “redimir”, por assim dizer, a possibilidade de acumular riqueza e bens, sem o peso de pecado da usura anteriormente atribuído ao enriquecimento dentro do esquema político-religiosos do sistema feudal. A partir de então, ascende o indivíduo ao centro do pensamento, agora marcado pela busca da autonomia ética. Desenvolvem-se, a partir daí, as bases sobre as quais se constroem os valores da modernidade, com sua ênfase na autonomia e num sistema pautado no individualismo que passa a direcionar a nova cosmovisão nascente, caracterizada pelo surgimento posterior e consolidação das bases do capitalismo, do individualismo e autonomia da razão – valores esses primordiais da modernidade.
Hoje, ao celebrar os quinhentos anos da Reforma Protestante, a humanidade se encontra diante de mais uma mudança de paradigma. A promessa de solução dos problemas humanos pelos valores do racionalismo, da ciência, do conceito de progresso e do capital não se mostraram factíveis. O otimismo em relação ao potencial humano de solucionar os problemas da contingencia social deu lugar à dúvida e desconfiança das instituições – religiosas ou seculares. Para usar um termo popularizado pela sociologia de Zigmunt Bauman, a “modernidade líquida” tornou-se um tempo de intensa fluidez, no qual as certezas da modernidade transformaram-se em fragmentados recortes de uma existência marcada pela mudança rápida e pela superficialidade. É nesse contexto que a anunciada falência da religião e emergência da “Cidade Secular,” apresentada pelo teólogo Harvey Cox, se defronta com a persistente presença e crescente influência dos diversos grupos religiosos, que emergem como alternativa ou reações aos incertos e fluidos valores da pós-modernidade.
Nesse contexto, um dos principais desafios éticos de nosso tempo é encontrar caminhos de dialogar com o pluriverso de perspectivas e multiplicidade de identidades e vivências construídas nas últimas décadas. A espiritualidade cristã precisa colocar-se no espaço desse tão necessário diálogo, criando interstícios, onde atores dos centros e das periferias da vida possam construir pontes e potencializar encontros, para além das trincheiras ideológicas. Que nesse tempo de celebração da Reforma os valores do Reino e do Cristo prevaleçam e nos guiem no exercício de nossa missão como igreja de Cristo.